OPINIÃO
Uma polícia secreta para Alexandre de Moraes chamar de sua
Por Deltan Dallagnol (*)
Durante a retomada das atividades do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes anunciou que está no forno, em nome da democracia inabalada, uma inovação para as eleições municipais deste ano: um grupo de trabalho formado pelo TSE, pela Polícia Federal e pelo Ministério da Justiça, com o objetivo de “monitorar” pessoas que “atentam contra a democracia”. Moraes explicou que sua ideia é rastrear quem espalha “discurso de ódio”, mas o ministro não explicou que definição de “discurso de ódio” ele estava utilizando.
O discurso de Moraes arrepiou os cabelos e trouxe preocupação para qualquer um preocupado de verdade com a democracia e com a liberdade, justamente porque o grupo de trabalho anunciado por ele se parece muito com o tipo de polícia secreta empregada por ditaduras ao redor do mundo. A ideia de Moraes parece algo vindo direto das páginas da história, como a polícia secreta de Hitler, a SS alemã, ou aquela empregada por Stálin durante a União Soviética, cuja frase de seu chefe, Laurenti Beria, foi imortalizada: “Mostre-me o homem e eu lhe mostrarei o crime”.
Nem Moraes nem o TSE deram mais detalhes desse plano mirabolante do ministro para as eleições de 2024, portanto, posso apenas analisar o discurso de Moraes, mas o que foi apresentado até agora é extremamente problemático do ponto de vista jurídico e constitucional. Em primeiro lugar, a iniciativa causa bastante estranheza, porque o TSE não tem jurisdição para “monitorar pessoas”, objetivo declarado de Moraes. Jurisdição é um conceito do direito que conceitua poder: é o que define quem pode fazer o quê. A Constituição Federal regulamenta a atuação do TSE nos artigos 118 e seguintes, sendo que o art. 121 diz que lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais e juízes eleitorais.
A ideia de Moraes parece algo vindo direto
das páginas da história, como a polícia secreta
de Hitler, a SS alemã, ou aquela empregada
por Stálin durante a União Soviética
Não há uma única lei complementar no Brasil, discutida e aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, que dê a Moraes e ao TSE o poder de “monitorar pessoas”. O TSE simplesmente não tem esse poder, e até que essa lei complementar exista, qualquer iniciativa nesse sentido estará totalmente contaminada pelo vício da ilegalidade. O TSE é um órgão essencialmente administrativo, que tem como função, dentro do Poder Judiciário, organizar e administrar as eleições. O TSE não tem o poder de criar uma polícia de caráter repressivo.
Um segundo problema é que Moraes disse que o grupo vai monitorar “pessoas que atentam contra a democracia”, mas esse objetivo também é ilegal. O sistema penal e processual vigente no Brasil é o acusatório, em que predomina o princípio do devido processo legal e a separação entre as funções de investigar, processar e julgar/punir. O Estado não pode, portanto, investigar pessoas, mas sim fatos. Investigar pessoas é uma das principais características de um antigo sistema inquisitório, cujo melhor exemplo é o das perseguições ocorridas durante a Idade Média pela Santa Inquisição. Nesse sistema, não se investigam fatos, mas pessoas – parte-se da pessoa que se quer condenar para depois encontrar um fato ou prova que a incrimine, ou inventá-los, se não puderem ser produzidos.
A iniciativa de Moraes, além de ser muito parecida com a das polícias secretas que abundavam e ainda abundam nas ditaduras ao redor do mundo, assemelha-se muito com um tipo de “political profiling”, isto é, uma tentativa de filtrar e perseguir pessoas em razão de suas preferências políticas pessoais. Na prática, o que vai acontecer é uma investida contra pessoas que Moraes e seus colegas classificam de extrema-direita, que hoje no Brasil significa apoiar o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Pelo menos 50% do Brasil o apoia, se tomarmos em conta apenas a sua votação nas últimas eleições. Significa, também, perseguir qualquer pessoa que tenha dúvidas e questionamentos a respeito das urnas eletrônicas, o que hoje representa cerca de 30% da sociedade. Há também os que não querem se vacinar e nem vacinar seus filhos com uma vacina contra a Covid-19, que não é obrigatória para crianças na maior parte do mundo desenvolvido, ou também aqueles que acham que o 8 de janeiro não foi um golpe de Estado – a maioria dos brasileiros, aliás. Haverá recursos para Moraes monitorar tanta gente assim?
O TSE simplesmente não tem esse poder, e
até que essa lei complementar exista, qualquer
iniciativa nesse sentido estará totalmente
contaminada pelo vício da ilegalidade
Um terceiro problema é que enquanto Moraes coa um mosquito procurando quem atenta contra a democracia, ele engole um camelo ao fechar os olhos para a corrupção comprovada do PT e, segundo três condenações aliviadas pelo STF, também do presidente Lula, com quem ele se encontra para animados jantares e almoços, segundo a imprensa. Moraes ignora quem efetivamente perverteu e atentou contra a democracia ao desviar bilhões de reais para campanhas eleitorais que, no fim das contas, fraudaram a vontade dos eleitores, já que os políticos corruptos abastecidos com dinheiro do Petrolão investiram milhões para influenciar a visão e vontade das pessoas.
Mais uma vez, Moraes expõe a incoerência e a hipocrisia do Supremo, que é tigrão com os pobres, fracos e pequenos, como vemos nos julgamentos dos réus do 8 de janeiro, mas tchutchuca com os políticos corruptos poderosos e outros réus de colarinho branco. Com um Toffoli cada vez mais desgovernado em sua sanha de tratorar a Lava Jato e um Alexandre de Moraes cada vez mais obstinado em acumular poder além de suas funções judiciais, não é surpresa que o próximo passo seja a criação de uma polícia secreta só do TSE. A pergunta mais importante é: depois que Moraes tiver uma polícia secreta para chamar de sua, qual será a próxima invenção do ministro? Aonde isso vai parar?
(*) Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi
o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como
procurador por 18 anos e foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.
Fonte: Gazeta do Povo