sábado, outubro 4, 2025
BRASIL E MUNDODESTAQUENOTÍCIAS

Depois da Débora do batom / O caso que desmonta Moraes: Cristiane, a “golpista” que só levava Bíblia e bandeira

OPINIÃO

Por Deltan Dallagnol (*)

Os ministros do STF, Luiz Fux e Alexandre de Moraes divergem sobre as condenações contra réus do 8 de janeiro. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

“Aproveito aqui, presidente, para desfazer uma narrativa totalmente inverídica, até um dos nobres advogados disse uma questão de terraplanismo, aqui seria muito semelhante: se criou uma narrativa de que, assim como a terra seria plana, o Supremo Tribunal Federal estaria condenando ‘velhinhas com a Bíblia na mão’, que estariam passeando num domingo ensolarado pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Congresso Nacional e pelo Palácio do Planalto. Nada mais mentiroso do que isso, seja porque ninguém lá estava passeando, seja porque as imagens mostram isso, seja pelas condenações.” Essas foram as palavras ditas pelo ministro Alexandre de Moraes durante o recebimento da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o chamado “núcleo crucial” do golpe.

Naquele dia, em vez de decidir de acordo com as provas dos autos, a Constituição e as leis, ficou evidente que Moraes preferiu se defender das críticas e atacar adversários políticos, além de “desfazer narrativas”, como disse o próprio ministro. Mas quem vai desmentir as fake news de Moraes? Sim, porque o que ele disse, para variar, é mentira: havia, sim, velhinhas com a Bíblia na mão rezando no 8 de janeiro que foram presas.

Depois do caso de Débora do batom, condenada a mais de 14 anos por sujar a estátua da Justiça, temos o caso da Cristiane Angélica: seu crime foi rezar com uma bandeira na mão. Não se sabe ainda se o seu crime foi sua fé ou seu patriotismo

A prova, surpreendente, foi apresentada pelo ministro Luiz Fux – o único magistrado de carreira no Supremo e também o único com coragem de divergir de Moraes no julgamento da ação do golpe. Em novos votos proferidos na semana passada, Fux trouxe à tona casos do 8 de janeiro tão chocantes que parecem inverossímeis. Um deles é o de Cristiane Angélica, uma mulher simples de 59 anos, desempregada à época dos atos. Cristiane foi à manifestação com duas “armas”: uma Bíblia e uma bandeira do Brasil.

Quando os atos saíram de controle, Cristiane foi empurrada pela multidão e pelas bombas de efeito moral para dentro do Senado Federal, onde buscou abrigo das explosões, do gás e da fumaça. Lá, juntou-se a um grupo de senhoras que se ajoelhou e começou a rezar com elas. Esse foi seu depoimento à Polícia Federal (PF). E não é só a palavra dela: um policial legislativo presenciou a cena e confirmou tudo em juízo. Para a sorte dela, esse mesmo policial havia tirado uma foto com Cristiane minutos antes, o que permitiu localizá-lo.

Na foto, ambos aparecem com um sorriso leve, tranquilos. Difícil imaginar que um policial encarregado de proteger o Senado posaria para uma foto dessas com uma “golpista perigosa”: isso por si só já enfraquece a acusação. Some-se o fato de que Cristiane estava desempregada, não portava armas e nunca recebeu treinamento militar. Mais que isso: o policial legislativo afirmou ter visto Cristiane e as outras senhoras rezando, sem praticarem qualquer ato criminoso – nem quebrar um azulejo.

Esse já seria motivo suficiente para derrubar a acusação. Mas há mais: o policial que fotografou Cristiane e testemunhou sua conduta pacífica no Senado tornou-se depois promotor de Justiça em Santa Catarina. Se já parecia improvável que um policial legislativo mentisse sobre a ré, ainda mais absurdo seria imaginar um promotor – cuja função é acusar criminosos – inventando um testemunho tão favorável a ela. Mentir então no seu estágio probatório, depois de tanto estudo para passar no concurso, seria loucura. A verdade é que Cristiane é inocente. Fux, obviamente, absolveu-a de tudo.

Depois do caso de Débora do batom, condenada a mais de 14 anos por sujar a estátua da Justiça, temos o caso da Cristiane Angélica: seu crime foi rezar com uma bandeira na mão. Não se sabe ainda se o seu crime foi sua fé ou seu patriotismo. Ser angelical – muito para além do nome – não a ajudou. Foi diabolicamente condenada por Moraes a mais de 14 anos de prisão.

O caso de Cristiane, assim como o das senhorinhas que a acompanhavam, prova que Moraes mentiu. E vejam a ironia: ele mentiu ao afirmar que os outros mentiam. E não era qualquer mentira: era do nível absurdo, terraplanista, segundo ele. Contudo, as provas mostraram que o que ele chamou de inverídico era verídico. Narrativa era na verdade o que ele criava, não o que ele rebatia. E é justamente ele que, com os demais ministros aliados, quer regular as redes sociais contra fake news. Esse episódio confirma que o real objetivo não é regular desinformação: é garantir o seu monopólio.

No livro Justificando a repressão digital por meio do ‘combate às fake news’ – Um Estudo de Quadro Autocracias do Sudeste Asiático, os autores mostram que essa estratégia não foi criada no Brasil: “Todos os quatro países usaram alegações de “fake news” para penalizar os críticos. Camboja, Tailândia e Vietnã tendem a usar tais alegações para pressionar empresas de tecnologia a remover conteúdo a mando dos governos. Tailândia e Vietnã tendem a explorar tais alegações para reforçar a vigilância online. Mianmar é o único país que recorre ao bloqueio da internet”.

Afinal, a verdade ainda vale alguma coisa no STF e na grande mídia? Quem ainda se interessa por ela? A grande imprensa brasileira é ágil para repercutir narrativas e falas de Moraes sem checagem ou senso crítico. Mas e as vozes de pessoas simples como a Cristiane, condenada sem provas, apesar de todas as evidências apontarem para a absolvição? Por que nenhum jornalista da grande mídia se dá ao trabalho de ler os processos, confrontar provas e contar a verdade sobre os abusos de Moraes? Por que ninguém tem coragem de desmentir as fake news dele? Com a palavra, a grande imprensa brasileira.

(*) Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.

Fonte: Gazeta do Povo