OPINIÃO
Adolfo Sachsida e a coragem de dizer a verdade
Por Paulo Briguet (*)

Mesmo nos meus tempos de comunista e ateu, sempre mantive o hábito de ler a poesia de T. S. Eliot, o grande autor anglo-americano que morreu há 60 anos. Lembro-me de ler os poemas de Eliot no quartinho dos fundos de minha república de estudantes, ali na pracinha dos ipês amarelos. Dou graças a Deus por esse costume.
Se “herói” é aquele cujos feitos não são revogáveis pela morte, Eliot está entre os meus heróis e continua vivo em sua obra magistral. A república foi demolida há muito tempo; a pracinha ainda sobrevive; os versos de Eliot são eternos.
Como sempre faço no início da Quaresma, reli hoje o poema “Quarta-Feira de Cinzas” (Ash Wednesday), publicado em várias partes entre 1927 e 1930, e que marca a conversão do poeta à fé cristã.
Um ano antes da primeira publicação do poema, Eliot surpreendeu o irmão e a cunhada ao cair de joelhos aos pés da Pietà de Michelangelo, durante uma visita a Roma. Até aquele momento, todos viam Eliot como o intelectual descrente, autor dos geniais e sombrios “A Terra Desolada” (The Waste Land) e “Os Homens Ocos” (The Hollow Men), lamentações de um mundo em ruínas.
“Quarta-Feira de Cinzas”, porém, é o começo de uma jornada rumo à contemplação de Deus, que se completaria mais tarde com os “Quatro Quartetos” (Four Quartets).
A exemplo de Dante, um de seus modelos existenciais e literários, Eliot desceu os nove círculos do Inferno e subiu os sete patamares do Monte Purgatório para poder atingir a visão esplendorosa do Paraíso. Em “Quarta-Feira de Cinzas” — um poema evidentemente purgatorial —, Eliot simboliza a esperança da redenção na figura de Maria:
“Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
Rosa do oblívio
Exausta e vivificante
Atormentada tranquila
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina.”
Esses versos se encaixam perfeitamente com as palavras do padre na missa de ontem, quarta-feira, ao depositar as cinzas sobre a minha cabeça: “Convertei-vos e crede no Evangelho.”
Reencontro com o poeta
Dias atrás, tive a alegria de reencontrar um velho amigo, N., talentoso poeta e jornalista que conheci ainda na minha fase de materialismo ateu. Acompanhado de minha amada Rosângela, conversei longamente com N. e sua querida esposa, R., também ela uma competentíssima jornalista.
Um dos principais temas de nossa conversa foi a ausência do sentimento de compaixão no mundo de hoje — sempre acompanhada da incapacidade de perdoar as falhas do outro.
Há quase 30 anos, fui extremamente injusto com N. durante uma assembleia sindical. Por uma graça especial de Deus, tive a chance de reconsiderar o que fiz e pedir o perdão a ele. N. não se limitou a perdoar-me, mas ofereceu-me algo ainda mais precioso: sua amizade.
Contudo, o ato do perdão — que, nas palavras do professor Olavo de Carvalho, constitui a lei estrutural do próprio universo — virou uma raridade em nosso tempo. Pior que isso: tornou-se sinônimo de fraqueza e derrota.
Nos últimos dias, o grito de guerra “Sem Anistia!” se transformou no mote oficial do Carnaval brasileiro
Multidões ensandecidas e suarentas ignoram o sofrimento de pessoas inocentes — pais e mães de família, idosos, trabalhadores comuns, crianças condenadas à orfandade — para seguir as ordens de uma casta de políticos.
São almas mortas apegadas a um slogan, não importa o quanto esse slogan signifique em termos de sofrimento humano. Atacam os presos políticos para defender aqueles que um dia foram políticos presos.
Mal sabem eles que esses injustiçados de hoje — a quem se nega qualquer tipo de clemência — são apenas os primeiros de uma imensa lista que conduzirá ao Gulag dentro de poucos anos.
Eles ainda estão aqui
Os últimos dias foram de reencontros. Revi muitos bons amigos; um deles foi o professor Adolfo Sachsida, a quem não encontrei pessoalmente, mas cujas palavras lavaram a minha alma.
Brilhante economista, ex-ministro de Minas e Energia, Sachsida foi o responsável por ensinar ao ex-presidente Jair Bolsonaro, quando este ainda era deputado federal, os princípios fundamentais da economia de mercado.
Mas com o Adolfo Sachsida eu também tenho uma história de perdão. Em 1990, quando ambos estudávamos na Universidade Estadual de Londrina (UEL), realizou-se uma assembleia geral universitária para decidir sobre uma greve de professores, funcionários e estudantes.
Em determinado momento da assembleia, colocou-se em votação a proposta de invasão da reitoria (o eufemismo usado era “ocupação”).
A proposta foi claramente rejeitada pela maioria da assembleia. No entanto, como era de interesse do sindicato dos professores realizar a tal “ocupação”, a mesa diretora esperou que a assembleia se esvaziasse (os últimos ônibus partiam às 23h) e colocou novamente em votação a proposta antes rejeitada. Desta vez, com os militantes em maioria, a invasão da reitoria foi aprovada.
Uma única pessoa se levantou e pediu a palavra para denunciar o golpe. Seu nome era Adolfo Sachsida, um jovem estudante de Economia
Acontece que eu estava lá, presenciei o golpe e fingi não ter entendido — tudo em nome da solidariedade com os companheiros de sindicato. Muitos anos depois, quando Adolfo escreveu um artigo sobre aquele golpe da invasão da reitoria — da qual eu vergonhosamente participei —, tive a chance de pedir perdão a ele.
Agora, Adolfo escreveu um belíssimo texto sobre a situação dos presos políticos brasileiros. Diante da dura verdade, é provável que a esquerda faça o que sempre fez: feche os olhos e os ouvidos para obedecer aos líderes. Mas este cronista de sete leitores não poderia deixar de enaltecer esse gesto de coragem e amor ao próximo: — Obrigado, Adolfo Sachsida!
Começamos com Eliot, terminemos com ele. Em complemento às corajosas palavras de meu amigo, deixo aqui os versos que finalizam “Quarta-Feira de Cinzas”, que parecem perfeitamente adequados aos nossos dias:
“Irmã bendita, santa mãe, espírito da fonte e do jardim,
Não permiti que entre calúnias a nós próprios enganemos
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego
Mesmo entre estas rochas,
Nossa paz em Sua vontade
E mesmo entre estas rochas
Mãe, irmã
E espírito do rio, espírito do mar,
Não me deixes ser separado
E que meu grito chegue a Ti.”
(*) Paulo Briguet é escritor, jornalista, palestrante e professor de literatura. Nascido em São Paulo no ano de 1970, trabalhou em diversos jornais, revistas e assessorias de comunicação no Paraná.
Fonte: Gazeta do Povo