sexta-feira, maio 3, 2024
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A carta branca do STF para sindicatos avançarem sobre o dinheiro do trabalhador

Em mais um exemplo evidente de que, quanto se trata do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, o que começa mal inevitavelmente acaba mal, os trabalhadores já começaram a ser os grandes perdedores da decisão que permitiu aos sindicatos descontar a contribuição assistencial na folha dos seus representados. Como se não bastasse a decisão em si afrontar explicitamente o texto e o espírito da Consolidação das Leis do Trabalho, alterada em 2017 pela reforma trabalhista, o Supremo ainda o fez de forma bastante genérica, deixando portas abertas para muitos sindicatos mostrarem que sua finalidade é garantir dinheiro para si mesmos, deixando o trabalhador em segundo plano.

A CLT afirma explicitamente que a iniciativa de qualquer desconto na folha em prol dos sindicatos deve partir do trabalhador: é ele quem manifesta sua intenção de contribuir. A expressão “autorização prévia e expressa” consta, por exemplo, nos artigos 578, 579, 582 e 583 da lei trabalhista. Isso vale também para a contribuição sindical, que é indiscutivelmente legal, mas tem de ser cobrada de acordo com o estabelecido pelo Congresso. No entanto, o que o Supremo permitiu foi a inversão daquilo que o legislador desejou em 2017: os sindicatos ficam autorizados a estabelecer uma cobrança indiscriminada, inclusive dos não filiados, a quem restaria apenas o “direito de oposição”, segundo os ministros do Supremo: os trabalhadores, em vez de manifestarem sua disposição em contribuir, como prevê a lei, teriam de se manifestar para não sofrerem o desconto, em uma espécie de “quem cala consente” validado pela suprema corte.

A ideia do sistema de financiamento dos sindicatos

 proposto na reforma trabalhista é estimular essas

entidades a realmente mostrar serviço em defesa dos seus

 representados, para que assim conquistem mais

 filiados. O Supremo inverteu completamente esta lógica

Os sindicatos perceberam na falta de modulação e na vagueza da previsão do “direito de oposição” uma brecha, e já avançaram sobre ela. Três sindicatos de domésticas no estado de São Paulo querem cobrar a contribuição assistencial de forma retroativa, abrangendo os últimos cinco anos, o tempo passado desde que a reforma trabalhista entrou em vigor. Outro sindicato, de agentes autônomos da cidade paulista de Sorocaba, estabeleceu uma contribuição de 12% e condiciona o exercício do direito de oposição ao pagamento de uma taxa de R$ 150. Difícil pensar em algo que viole de forma tão grotesca uma lei segundo a qual um trabalhador não sindicalizado não é obrigado a entregar um único centavo à entidade que diz lutar por seus interesses. Mas este é o tipo de mal que a caixa de Pandora aberta pelo STF com sua decisão está liberando.

E certamente haverá mais por vir, já que as centrais sindicais já se mobilizam para sufocar até for possível o exercício do direito de oposição. Em documento entregue ao Senado nesta segunda-feira, elas chegam ao ponto de sugerir punições a empresas que fizerem “incentivo à manifestação individual” contra o desconto – e certamente será preciso perguntar se a mera menção à possibilidade de alguém se opor ao pagamento acabará considerada “incentivo”, pelos parâmetros traçados pelos sindicatos. Um sindicato gaúcho já apresentou até mesmo notificação extrajudicial aos departamentos de Recursos Humanos das empresas, também pedindo cobrança retroativa. A ofensiva contra os empregadores seria um meio de evitar uma cobrança direta que causaria desgaste diante dos trabalhadores – como se, no fim das contas, não fossem sempre eles os grandes prejudicados.

A importância que os sindicatos têm como instância intermediária entre trabalhador e empregador, dentro de um espírito de associativismo bem compreendido, característico de sociedades saudáveis, não lhes dá carta branca para fazer o que bem entenderem na busca de recursos que lhe garantam a subsistência. A ideia do sistema de financiamento dos sindicatos proposto na reforma trabalhista é estimular essas entidades a realmente mostrar serviço em defesa dos seus representados, para que assim conquistem mais filiados e trabalhadores dispostos a contribuir voluntariamente com o sindicato – o mesmo princípio, aliás, que deveria reger o financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais. O Supremo, com seu ativismo judicial, inverteu completamente esta lógica, permitindo que mais uma vez a corda arrebente no lado mais fraco, o do trabalhador – e com a ajuda das entidades que deveriam protegê-lo, em vez de esfolá-lo.

Fonte: Gazeta do Povo – Editorial de 02/10/2023.